Co-Rio, órgão responsável pela organização dos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro, teve dívida assumida pelo COB, e valor pode chegar próximo a R$ 200 milhões
Por Marcelo Gomes e Thiago Cara / ESPN
15 de maio de 2022 / Curitiba (PR)
Quando você pensa nos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro, o que vem à cabeça? A primeira medalha de ouro, que demorou a sair, com Diogo Silva no taekwondo? A reforma do Maracanã? A inauguração do Engenhão? O velódromo que foi construído e logo derrubado, já que não tinha o padrão necessário para as Olimpíadas nove anos depois?
São algumas das lembranças possíveis de um evento que tinha como grande promessa deixar um valoroso legado para o esporte brasileiro – que deveria se intensificar após 2016, com os Jogos Olímpicos. Mas, 15 anos depois, ficaram mesmo as dívidas. Milionárias. Que caberá ao Comitê Olímpico do Brasil, o COB, pagar.
A reportagem da ESPN Brasil teve acesso ao último relatório de prestação de contas da entidade, que aponta uma dívida calculada em R$ 188,2 milhões por supostos problemas de improbidade administrativa, contratação de empresa sem licitação e aquisição de passagens aéreas para delegações estrangeiras para a realização do Pan de 2007. O valor é referente a dezembro de 2021 e pode ser estimado, com correções monetárias, em R$ 196 milhões em maio de 2022.
O COB, em contato com a ESPN, afirma não se tratar, ainda, de dívidas. Mas de “obrigações advindas de processos de repasse dos recursos públicos utilizados pelo Comitê Organizador daqueles Jogos”.
Na raiz do problema, está o Co-Rio, órgão criado em 2002 como responsável por administrar, gerir e realizar o que foi a 15ª edição dos Jogos Pan-Americanos na história. Carlos Arthur Nuzman, condenado a 30 anos de prisão por corrupção em 2021, era seu presidente, em função acumulada também com o comando do COB na época.
Em tese, o Co-Rio nasceu com tempo exato de vida, devendo durar até no máximo 180 dias após a realização do evento. Na prática, a empresa segue existindo até hoje no papel, embora não com os mesmos responsáveis pelos gastos próximos a R$ 5 bilhões com o evento em 2007.
Essa “caixa preta” começou a ser aberta na última assembleia do COB, na sede da entidade no Rio de Janeiro, no último dia 12 de abril, quando os dirigentes apresentaram o demonstrativo financeiro referente a 2020 e 2021 e também o relatório de uma auditoria externa, conduzida pela “RSM ACAL Auditores Independentes S/S”. Os documentos mostram um “legado” de endividamento da Co-Rio, “herdado” pelo Comitê.
“O (…) COB tem honrado compromissos assumidos com terceiros pelo Comitê Organizador dos Jogos Pan-Americanos Rio 2007 (“Co-Rio”), pois conforme prevê o estatuto do Co-Rio, o saldo remanescente de seu patrimônio líquido deverá ser destinado ao seu principal quotista, o COB. O Co-Rio ainda não obteve aprovação de todas as suas prestações de contas referentes aos convênios que financiaram os Jogos Pan Americanos Rio 2007. A falta de recebimento de recursos pelo COB frente a possíveis obrigações futuras levantará sérias dúvidas sobre a capacidade do Co-Rio em liquidar tais obrigações”, detalham os auditores.
“Na subsidiária Co-Rio existem processos avaliados pelos assessores jurídicos como sendo de risco de perda possível ou obrigações presentes cujos montantes não podem ser mensurados com suficiente segurança, no montante aproximado de R$ 188,240 milhões em 31 de dezembro de 2021 (R$ 171,327 milhões, em 31 de dezembro de 2020), para os quais nenhuma provisão foi constituída, tendo em vista que as práticas contábeis adotadas no Brasil não requerem sua contabilização”, continuam.
O maior valor entre os mais de R$ 188 milhões apontados como possíveis perdas para o Co-Rio é referente à “suposta dispensa irregular de processo licitatório realizado pelo Co-Rio, para contratação de empresa para realização das cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos Pan-Americanos”. A dívida é apontada em R$ 82,565 milhões.
Esse mesmo processo, movido pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o Co-Rio, inclusive, já gerou bloqueio judicial nas contas do COB, no valor de R$ 27,565 milhões.
“O presidente do COB, Paulo Wanderley, irritou-se e disse não ter sido ele o responsável pela má gestão que levou às cobranças. Acrescentou também que aquele não era o momento, nem local apropriados para aquela pergunta.”
Mas as dívidas não param por aí. A “aquisição de passagens aéreas para delegações estrangeiras”, em convênio com o Ministério do Esporte, gera cobrança para a Co-Rio de R$ 41,054 milhões. Outro convênio, com “suposto ato de improbidade administrativa na contratação do aluguel da Vila do Pan”, R$ 25,739 milhões.
Fecha a conta milionária outro “suposto ato de improbidade administrativa”, esse referente à “suposta existência de irregularidades no repasse de verbas federais junto a construtora responsável pela construção da Vila Pan-Americana”, segundo o demonstrativo financeiro. A empresa em questão é a Agenco – já condenada em processos judiciais a consertar danos estruturais das obras e indenizar moradores que depois adquiriram os apartamentos. A perda prevista nesse caso é de R$ 38,882 milhões.
O COB fica responsável pelo pagamento desses valores por deter 72% do Fundo Social do Co-Rio, sendo, portanto, seu maior quotista. Os restantes 28% pertencem às Confederações, Federações e Associações desportivas brasileiras, segundo o estatuto do órgão.
O demonstrativo financeiro do COB também aponta um “passivo a descoberto” referente ao Co-Rio. O termo, na contabilidade, é referente a uma situação na qual as dívidas de uma empresa superam seus ativos; ou seja, nem todo seu patrimônio é suficiente para arcar com suas obrigações. A provisão feita pelo COB em 2021 para cobrir o “rombo” deixado pela organização do Pan de 2007 é de R$ 1,5 milhão.
O que são R$ 200 milhões para o COB?
Apenas para referência, o COB teve no ano de 2021 R$ 259 milhões em receitas oriundas das loterias esportivas, através da Lei Agnelo/Piva, que são destinadas para sua manutenção. É seu principal faturamento.
O valor total que foi repassado ao COB pela Caixa Econômica Federal através da arrecadação de loterias foi de R$ 315,228 milhões. Esse é dinheiro é repassado às Confederações, 34 no total, que também tem normalmente nessas cifras sua principal fonte de arrecadação.
Já em termos de caixa, a entidade apontava em dezembro ter R$ 207,198 milhões, entre dinheiro em conta e em aplicações financeiras.
Já no que o COB aponta como receitas que ainda tem a receber, a soma no demonstrativo financeiro é de R$ 153,899 milhões, sendo quase a totalidade desse valor referente a patrocínios para o ciclo olímpico de 2021 a 2024, ano dos Jogos de Paris: R$ 133,398 milhões.
Os bastidores da assembleia
A reunião na qual foram apresentadas as últimas contas do COB, com um superávit de R$ 6,29 milhões em 2021 na relação entre receitas e despesas, contou com a presença de presidentes de confederações e da Comissão de Atletas. Os questionamentos são raros. O próprio Comitê sugere que observações, sugestões e perguntas sejam feitas via e-mail uma semana antes da reunião.
Segundo apurou a reportagem, porém, a assembleia teve o questionamento de um presidente de confederação sobre como o COB vai agir daqui para a frente com a dívida herdada do Pan, após 15 anos. O atual presidente do Comitê, Paulo Wanderley Teixeira, irritou-se e disse não ter sido ele o responsável pela má gestão que levou às cobranças. Acrescentou também que aquele não era o momento, nem local apropriados para aquela pergunta.
A direção do COB afirmou, porém, não ter caixa previsto para quitar essas dívidas no momento e que a entidade não poderá pagar essas dívidas com o dinheiro das loterias, já que isso representaria desvio de função do dinheiro público previsto na legislação.
Outro questionamento foi sobre o motivo de a atual gestão do COB não ter acionado na Justiça os responsáveis pelos problemas com o dinheiro do Pan de 2007.
A dívida deixada pelos Jogos Olímpicos do Rio 2016 foi outro tema de questionamento na reunião, a contragosto do COB. É que o valor das obrigações também pode bater a casa dos R$ 200 milhões. Esse assunto específico deve ser abordado em outro encontro dos dirigentes, no próximo mês, mas ainda sem data definida.
COB responde
A ESPN entrou em contato com o Comitê Olímpico Brasileiro e fez três perguntas direcionadas ao atual presidente da entidade, Paulo Wanderley Teixeira:
– Por que o COB deixou a dívida do Pan 2007 chegar a R$ 196 milhões e como fará para pagar?
– A dívida dos Jogos Olímpicos do Rio 2016 também está na casa de R$ 200 milhões. Se não, de quanto é a dívida deixada pela Olimpíada e como a entidade irá honrar o compromisso?
– Por que o COB não acionou na Justiça os gestores responsáveis por esse rombo milionário que certamente afetará a administração da entidade?
O COB se manifestou da seguinte forma
“O Comitê Olímpico do Brasil afirma que, em relação ao valor referente aos Jogos Pan-americanos Rio 2007, não se trata de dívidas, mas sim de obrigações advindas de processos de repasse dos recursos públicos utilizados pelo Comitê Organizador daqueles Jogos (chamado CoRio). O CoRio ainda se defende nestes processos judiciais e administrativos. Ao final da tramitação de tais processos, gestores serão devidamente responsabilizados se for comprovado algum tipo de desvio.”
“Quanto à segunda pergunta, a Rio 2016 tem empresa constituída e outra gestão. O COB procurou os responsáveis pelo Comitê Organizador, mas ainda não obteve retorno.”