Até hoje, o destino do dossiê produzido pela Kroll permanece sem explicação, e os funcionários demitidos por exporem o esquema de corrupção, supostamente ligado ao presidente da entidade e aos membros da ‘Quadrilha de Vitória’, nunca foram ouvidos.
Por Paulo Pinto / Global Sports
1º de outubro de 2024, Curitiba – PR
Em meados de 2019, Paulo Wanderley andava preocupado pelos corredores do COB. Àquela altura, ele sabia que já tramitava contra ele um processo investigativo interno que, caso não tivesse sido rapidamente abafado, certamente resultaria em penalização ético-disciplinar nas instâncias apropriadas da entidade para a alta cúpula do Comitê Olímpico do Brasil.
Naquela altura uma enxurrada de cartas e e-mails anônimos chegavam ao COB com certa frequência, endereçados a vários colaboradores, que se intitulavam ‘Quadrilha de Vitória’, no COB.
As correspondências davam conta de que estaria havendo fraudes na contratação dos serviços de informática do COB. E que elas envolviam empresas e pessoas do Espírito do Santo, ligadas diretamente a Paulo Wanderley e à Confederação Brasileira de Judô.
“Cartas anônimas relatavam, em detalhes, os mecanismos das fraudes e desvios de recursos.”
O gerente de compliance do COB naquela época, William Evangelista, no uso de suas atribuições estatutárias, contatou a Kroll, uma das mais reconhecidas empresas de investigação corporativa do planeta, para esquadrinhar o assunto. Evangelista, como gerente de compliance, tinha o direito, o dever e a obrigação de agir com independência. E assim o fez, quando se reuniu sigilosamente com representantes da Kroll numa das salas de reuniões do COB.
Poucos dias depois, inexplicavelmente, Evangelista foi demitido sumariamente de suas funções, o que levou a crer que, não obstante suas funções de compliance officer fossem independentes, tinha seus passos monitorados dentro do COB. Ou seja, fora implantando um sistema de vigilância interno para monitorar e blindar a fraude que visava implantar na entidade sistema similar ao adotado pela CBJ.
Para o lugar de William Evangelista, foi contratado Rodrigo Carril, que deu andamento às investigações e apurações dos fatos que eram detalhadamente relatados nas correspondências anônimas. Assim, a Kroll foi formalmente contratada para, também de forma independente, conduzir as investigações sobre as contratações e valores pagos no departamento de informática do COB.
Apenas 11 dias no cargo
Para surpresa daqueles que entendiam que a prisão de Carlos Arthur Nuzman havia posto fim aos desmandos financeiros de uma entidade com orçamento anual de meio bilhão de reais, Rodrigo Carril ficou apenas 11 dias no posto, e foi também sumariamente demitido.
Depois disso, o COB ficou sem um compliance officer, embora seu estatuto obrigasse tê-lo. Muito tempo depois, quando essa questão já estava devidamente sufocada, o COB contratou Nélson Valsoni Júnior para exercer a função.
Contudo, os Conselhos de Ética e de Conformidade do COB não se manifestaram, na época, sobre as demissões inexplicáveis dos colaboradores que estavam à frente da investigação ou sobre o fato de a entidade ficar tanto tempo sem um compliance officer.
O pivô das denúncias era Leonardo Rosário, pessoa de confiança de Paulo Wanderley, que não atuava apenas como prestador de serviços no período da CBJ, mas também gozava da intimidade do presidente do COB e frequentava a casa dele em Vitória. Não havia limites de horários para que ambos se falassem ao telefone. Era uma relação pessoal, que ia além da profissional. Quem assevera isso é a ex–mulher de Leonardo Rosário, Valéria Gobbi, em entrevista à coluna Olhar Olímpico, no UOL, em 20 de fevereiro de 2020 e que fora testemunha dos fatos. Na questão da contratação de serviços de informática pelo COB, que eram objeto da investigação da Kroll, uma das empresas contratadas estava em nome de Valéria Gobbi.
Com resultado de suas investigações, a Kroll emitiu dois relatórios preliminares, em 26 de agosto de 2019 e 12 de setembro de 2019. Em todas as páginas está escrito que o documento é confidencial. A Agenda Olímpica teve acesso à integra dos dois relatórios.
São documentos extremamente pormenorizados, minuciosos e concluem que os mecanismos de contratação de serviços de informática pelo COB de Paulo Wanderley eram os mesmos feitos durante a sua gestão na CBJ.
As primeiras coisas estranhas que a Kroll notou, em sua investigação foram (a) o laptop que LeonardoRosário utilizava no COB estava completamente limpo. Isso evidenciava que Rosário, por alguma razão, havia tomado o cuidado de apagar todo e qualquer arquivo que nele estivesse, para não deixar nenhumrastro de alguma evidência, e (b) o desktop que Leonardo Rosário tinha à sua disposição no COB fora inteiramente reformatado, poucos dias após ter a Kroll instalado no equipamento um dispositivo de monitoramento à distância. Ambos os fatos eram inusuais e chamaram muito a atenção dos investigadores independentes da Kroll.
Em seguida os relatórios revelam que todas as pessoas que eram objeto das denúncias e da investigação haviam sido prestadoras de serviços da Confederação Brasileira de Judô na gestão de Paulo Wanderley.
O relatório aponta ainda que em 2018 a empresa de Leonardo Rosário, LBM Tecnologia, havia recebido pagamento de R$ 50 mil do COB por serviços prestados decorrentes de contratos sem licitação. Paralelamente, de fevereiro e dezembro do mesmo exercício, Rosário recebera do COB R$ 146 mil, por serviços prestados como profissional autônomo, pagos por meio de RPAs.
A Kroll também identificou que uma empresa da mulher de Leonardo Rosário, Valéria Gobbi, em junho daquele ano, foi contratada para prestar serviços ao COB no valor de R$ 24 mil.
“Rosário foi réu em ação penal de estelionato, furto e falsidade ideológica.”
Em janeiro do ano seguinte, em 2019, a Kroll concluiu que Leonardo Rosário foi contratado como funcionário do COB, para exercer a função de gerente de TI, pelo salário mensal de R$ 25.900,00.
Outro ponto que chamou a atenção da Kroll era que Leonardo Rosário não tinha a formação acadêmica que apresentava em seu perfil no Linkedin. Rosário nunca tivera diploma de curso superior, o que é confirmado por sua ex-mulher, Valéria Gobbi.
A Kroll constatou, também, que em 2006 Leonardo Rosário foi, junto com sua irmã, réu em ação penal de estelionato, furto e falsidade ideológica. O processo tramitou em segredo de Justiça. O que se sabe dessa ação é que foi posteriormente arquivada, porque o juiz entendeu ter havido prescrição dos delitos.
Fraude em licitações
A Kroll foi capaz de comprovar que, em novembro de 2018, uma empresa de Rosário, chamada Rodrigues Design Ltda. (conhecida como RDWEB) venceu uma licitação simples para prestar serviços de tecnologia ao COB, no valor de R$ 250 mil. As regras do COB exigiam que valores superiores a R$ 25 milfossem contratados por meio de licitação padrão e nunca por licitação simples.
E, mais uma vez, nem o Conselho de Ética nem o de Conformidade do COB se manifestaram sobre esta falta grave cometida com consentimento do presidente Paulo Wanderley.
Na licitação simples, a Kroll detectou que concorreram com a RDWEB outras duas sociedades, a saber: Vix Vitória, empresa em que Rosário atuou como gerente–geral até junho de 2018 e na qual sua mulher, Valéria Gobbi, teve participação até setembro do mesmo ano; e uma empresa com sede em São José dos Campos, no Estado de São Paulo, chamada Simptec, cujo representante legal era Richardson Leão. Em maio de 2018, esta mesma empresa encaminhou ao COB uma proposta de trabalho para prestação de serviços. Em março de 2019, o departamento de informática do COB, chefiado por Leonardo Rosário, contratou a Simptec, sem licitação, para prestar serviços de armazenamento de dados, no valor de R$ 22.800,00. No mesmo mês, Rosário requereu ao departamento de Recursos Humanos do COB a contratação de Richardson Leão como prestador de serviços autônomo, mediante pagamento por meio de RPA, o que foi acolhido em abril.
Outro ponto relatado pela Kroll é que, em outubro de 2018, o COB levou a cabo um pregão eletrônico (processo licitatório) para a contratação de “serviços especializados de tecnologia da informação” no valor de R$ 1 milhão. A vencedora foi a Ebalmaq Comércio e Informática, do Espírito Santo, Estado em que Paulo Wanderley mantém sua residência há décadas.
A Ebalmaq, por sua vez, informou ao COB que os serviços seriam prestados por Érico Montibeller, cujo primo, Everson, naquele momento, já atuava como colaborador do comitê olímpico. Constatou-se, ainda, que Leonardo Rosário mantinha relações pessoais com um dos sócios dessa empresa, uma vez que ambos participavam da Loja Maçônica Cavaleiros da Cruz.
Outro fato grave apurado pela Kroll é que Leonardo Rosário e Érico Montibeller debatiam com liberdade e desenvoltura as formas de licitação do COB. Ao ser indagado sobre a razão de adotar modelo licitatório distinto daquele determinado pelo TCU, Rosário escreveu, em comunicado interno: “Já alinhei com o Marco Loureiro e com o Rogério Sampaio e seguiremos dessa forma”.
Nova denúncia e outra demissão sumária
Em dezembro de 2018, o Conselho de Administração do COB aprovou a contratação da Ebalmaq. Seis meses depois, a gerente jurídica do COB, Ana Paula Macedo Terra, notificou Leonardo Rosário de que a Ebalmaq não havia prestado nenhum serviço ao COB. E Ana Terra foi sumariamente demitida e excluída do cenário. Depois disso, o COB nunca mais abordou a questão.
Coincidências à parte, é muito importante lembrar que quase todos os envolvidos nesta trama surreal que da noite para o dia sumiu dos radares da imprensa e do Ministério Público Federal, têm origem no mesmo domicílio de Paulo Wanderley Teixeira, antes de ele assumir a presidência do Comitê Olímpico do Brasil.
Everson Montibeller, por exemplo, esteve envolvido na formatação da plataforma Zempo, sistema de gestão esportiva que passou por várias empresas até que Montibeller assumiu o controle da plataforma que até hoje é utilizada pela CBJ e pelas federações estaduais.
Além da trama protagonizada por Paulo Wanderley Teixeira, típica dos gestores esportivos do início deste século, nestes episódios os impolutos Conselhos de Ética e de Conformidade do COB demonstraram fragilidade e falta de independência para garantir a integridade da organização, quando deveriam promover a governança e a responsabilidade dentro do ambiente olímpico. Aqui estão as principais funções de cada conselho.
Conselho de Ética
Conselho de Conformidade
2) Monitoramento e controle interno: Este conselho tem a função de monitorar as operações internas do COB, implementando políticas de controle para garantir que todos os processos estejam alinhados com as normas de boa governança.
3) Promoção de boas práticas: Além de fiscalizar, o conselho também incentiva a adoção de melhores práticas de gestão, ajudando a mitigar riscos e melhorar a eficiência administrativa.
Ética e conformidade zero
Ambos os conselhos são essenciais para que, de forma independente, o Comitê Olímpico do Brasil mantenha uma gestão transparente e responsável, garantindo o desenvolvimento sustentável do esporte olímpico no Brasil.
Lamentavelmente, no episódio que envolveu o esquema de corrupção supostamente ligado ao presidente da entidade e aos membros da ‘Quadrilha de Vitória’, os Conselhos de Ética e Conformidade do COB mostraram-se omissos. A total falta de independência dessas instâncias diante de fatos tão graves, ou até mais escandalosos, do que aqueles que levaram à prisão e renúncia de Carlos Arthur Nuzman, reforça a urgente necessidade de reformulação nos mecanismos de controle interno e transparência da entidade.