Segundo as denúncias, Lucas Prado, Silvânia Costa e Ricardo Costa foram classificados de maneira incorreta e, por isso, teriam tido vantagem esportiva competindo na categoria T11.
Por Bruna Campos e Felipe Brisolla / ge
20 de dezembro de 2023 / São Paulo (SP)
O Esporte Espetacular recebeu denúncias de que três atletas da seleção brasileira de atletismo paralímpico foram classificados de forma errada e, consequentemente, teriam tido vantagem esportiva em competições nacionais e internacionais na categoria para pessoas cegas (LogMAR menor que 2.6). Os atletas em questão são Lucas Prado, Silvânia Costa e Ricardo Costa, os três medalhistas de ouro em Paralimpíadas. Os denunciantes afirmam que o comportamento suspeito dos atletas citados é amplamente conhecido por pessoas do meio, inclusive pelo Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB).
“Os dirigentes do CPB estão cientes de que existe trapaça de atletas que não são cegos”, disse um denunciante.
“O Movimento (Paralímpico) perde muitos talentos, porque a classificação está errada”, disse outro denunciante.
O medo de represália faz com que eles prefiram o anonimato.
A apuração das denúncias pelo “Esporte Espetacular” começou em 2020. A reportagem conversou com dezenas de pessoas envolvidas com o Movimento Paralímpico Brasileiro, recebeu vídeos e monitorou o comportamento de três campeões do Brasil que teriam sido classificados de forma errada. São atletas que, segundo as denúncias, enxergam mais do que o previsto em suas categorias. Lucas Prado (três ouros e duas pratas paralímpicas), Silvânia Costa (bicampeã paralímpica) e Ricardo Costa (campeão paralímpico) são referências do atletismo nacional.
“A medalha de ouro é que faz subir a classificação do País no quadro de medalhas, então é a mais importante, e todo mundo sabe. Até aí, OK. Mas que sejam medalhas de ouro limpas, né”, disse um denunciante.
Entenda a classificação oftalmológica do atletismo paralímpico
No atletismo paralímpico, há subdivisões. As provas de pista recebem a letra “T”, de track, em inglês. As competições no campo recebem a letra “F”, de field. Quem tem alguma deficiência visual pode ser classificado em três categorias: 11, 12 e 13. A que concentra os atletas com menor capacidade de enxergar, inclusive os cegos totais, é a 11. É nessa categoria que competem os atletas denunciados.
De acordo com as regras e regulamentos de classificação do paratletismo mundial, para estar na categoria 11, um competidor precisa ter acuidade visual menor que 2.6 LogMAR. LogMAR é uma tabela de referência internacional que ajuda a definir o grau de deficiência visual que um indivíduo possui, a qualidade da visão, o quanto de detalhes a pessoa enxerga.
“Acuidade visual menor do que 2.6 (LogMAR) é considerada, em termos práticos, como cegueira”, explicou o oftalmologista Rubens Belfort Júnior.
Mesmo que a pessoa consiga ter alguma percepção visual, se ela apresenta acuidade visual menor que 2.6 LogMAR, para a Organização Mundial da Saúde (OMS), ela é cega, pois a capacidade de enxergar nesses casos é mínima.
“Ela precisa utilizar técnicas de orientação e mobilidade. Ela precisa receber treinamento para que ela possa, por meio de auxílios como a bengala longa, ter melhor orientação espacial para que ela tenha autonomia na sua mobilidade”, explicou a oftalmologista Maria Aparecida Onuki Haddad.
Não à toa, na categoria 11, todo corredor é obrigado a competir com um atleta-guia e um cordão de ligação. Nas provas de salto em distância, o guia também está presente e dá coordenadas para o competidor na hora do salto. São medidas importantes para evitar acidentes, porque quem compete na categoria 11 precisa de ajuda para se deslocar pela pista, correr em linha reta e se posicionar no bloco de largada. São limitações que, consequentemente, também afetam o jeito de treinar. Quem explica é Felipe Gomes, do atletismo paralímpico da classe T11.
“Eu vou parar de correr e não vou ter aprendido a correr, porque correr é muito difícil. Por mais que o meu guia me passe a experiência de corrida dele, o gesto que eu tenho que fazer, eu não consigo reproduzir da mesma forma. Eu penso nisso noite e dia”, contou Felipe, dono de dois ouros, uma prata e um bronze em Paralimpíadas.
Mesmo que os atletas corram obrigatoriamente com os olhos vendados, ter alguma visão em toda a preparação, nos treinos, por exemplo, já seria uma vantagem.
As denúncias
Para verificar as suspeitas, o “Esporte Espetacular” consultou os principais oftalmologistas do Brasil especializados em visão subnormal ou baixa visão. Eles analisaram diferentes situações envolvendo os denunciados.
Lucas Prado
Lucas perdeu a visão em 2002 após um descolamento de retina. Depois de tentar outras modalidades, ele passou a se dedicar ao atletismo quatro anos depois do diagnóstico. Ele é um velocista especialista nas provas de 100m, 200m e 400m rasos. Em Pequim 2008, ele ganhou três medalhas de ouro, todas na categoria dos cegos, a T11. No entanto, um ex-colaborador do CPB fez o seguinte relato:
“O caso que eu presenciei foi um atleta se alimentando, pegando a comida da bancada de uma forma como se estivesse enxergando, sabe? Então assim, está caminhando e está vendo a comida, e passando, e pegando, e seguindo, e sentando na própria cadeira. Como faz sentido isso? A pessoa é cega! É o Lucas Prado”, disse o ex-colaborador, que ainda contou ter sido alertado por um colega a não tocar no assunto.
Em um registro gravado durante um treino e compartilhado nas redes sociais, Lucas Prado estica o braço e pega um copo servido em um bandeja.
“Não é compatível. Ele pegou o copo. Ele pode, assim, sentir que tá chegando na bandeja. Mas ele foi direto no copo. Seria um movimento errático para recolher alguma coisa. Cego total não a veria. Ele podia estar vendo o vulto da bandeja e imaginaria. Mas foi muito certo no copo”, analisou Helder Alves da Costa Filho, oftalmologista, classificador do Comitê Paralímpico Internacional e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Visão Subnormal.
Em outro vídeo compartilhado nas redes sociais, Lucas aparece na garupa de uma bicicleta e, em determinado momento, ele olha para o relógio e lê quanto tempo havia passado.
“Ele olha o relógio e fala, informa. Ele tem visão. É impossível não ter visão e fazer isso”, analisou a oftalmologista Maria Aparecida Onuki Haddad, integrante da Sociedade Brasileira de Visão Subnormal.
Ricardo Itacarambi foi o primeiro treinador de Lucas Prado, quando ele começou no atletismo paralímpico em 2006, em Cuiabá. Ele descreve o ex-pupilo como uma pessoa que tinha percepção espacial e visibilidade de até quatro metros dependendo da luz. O técnico afirma que já teve um atleta que desistiu de competir ao perceber que o adversário enxergava mais. Ele disse: “Não adianta eu competir com uma pessoa que enxerga mais que eu.”
O campeão olímpico Joaquim Cruz, que hoje mora nos Estados Unidos e faz parte da equipe paralímpica norte-americana, já questionou o comportamento e a capacidade visual de Lucas Prado nos Jogos Paralímpicos de Londres, em 2012.
“Eu adoro os brasileiros. Nunca deixei de ajudar o meu povo. Mas, acima de tudo, é minha obrigação proteger o esporte de uma forma geral. Houve reclamações dos próprios brasileiros sobre o Lucas, de que ele andou de moto. Não quero tocar muito no assunto para não levar para o lado pessoal”, disse Joaquim Cruz na época ao portal Terra.
Procurado pela reportagem do “Esporte Espetacular”, Joaquim Cruz preferiu desta vez não se manifestar sobre o assunto.
“Estados Unidos já entraram com recurso no IPC. Angola, Portugal, outras nações que se sentiram indignadas com essa situação. Só que o argumento que eles (do CPB) têm pra usar é o seguinte: a gente segue o que o médico falou. Os classificadores, os médicos dizem que ele é cego. A gente não pode fazer nada”, disse Felipe Gomes.
Silvânia Costa
Silvânia é bicampeã paralímpica do salto em distância T11. Foi ouro nos Jogos do Rio 2016 e em Tóquio 2020. Desde criança, foi diagnosticada com uma distrofia chamada Doença de Stargardt, que afeta a visão central, a distinção de cores e a percepção de pequenos detalhes.
“Silvânia Costa. Eu a vi atravessando a rua sozinha. Uma rua muito movimentada, ela atravessou a rua sozinha. Ela é uma atleta que está classificada como T11, que seria para atletas com uma baixíssima acuidade visual ou nenhuma. Ela atravessou uma rua sozinha. É difícil”, disse um denunciante.
Em alguns vídeos, Silvânia aparece desviando de obstáculos e se deslocando em espaços estreitos.
“Ela atravessou, virou um pouquinho o trajeto e agiu como uma pessoa que tivesse uma visão normal. O que não quer dizer que ela não tenha uma visão central muito baixa, mas por esse aspecto assim, pelo menos demonstra que o campo visual dela é adequado para realizar esse trajeto que ela fez”, disse o oftalmologista Rubens Belfort Jr.
“Até pessoas de fora questionam: ‘Nossa, tal atleta não poderia fazer isso, porque, sei lá, não tem essa capacidade física, não enxerga. Por que faz isso? Como ele faz? Compete com você? Por que vocês são da mesma classe?” Então pessoas que nem entendem nada estão vendo essa injustiça. As que estão dentro veem e fingem que não veem. Assim tá seguindo”, disse um denunciante.
Em outro vídeo, gravado em uma competição olímpica da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt), ou seja, com atletas sem deficiência, Silvânia se posiciona sozinha no bloco, aparece correndo em linha reta sem o auxílio de um guia e desacelera ao passar a marca dos 100 metros. A competição foi realizada em abril de 2021.
“É impossível você no meio, no barulho ali, você correr em linha reta e saber a hora de chegar”, disse Felipe Gomes.
‘O T11 sempre tem que correr com o atleta-guia. Isso que está esquisito nessa filmagem”, disse Helder Alves da Costa Filho, oftalmologista e classificador do IPC.
“Ela correr na prova da CBAt sem guia é um tapa na cara de qualquer atleta que tá buscando de forma honesta chegar nos resultados”, disse um denunciante.
“A única coisa que intriga é que ela realmente foi muito bem na própria rota. Por que competiria numa competição olímpica se é uma pessoa que precisa de forma comprovada da ajuda de outra pessoa para fazer a competição?”, questionou a oftalmologista Maria Aparecida Onuki Haddad.
Ricardo Costa
Ricardo é irmão de Silvânia Costa e também é um atleta consagrado, campeão do salto em distância T11 nas Paralimpíadas do Rio 2016. Ele teve a visão limitada pela mesma enfermidade congênita que afeta a irmã, a Doença de Stargardt.
“Você consegue ver o Ricardo andando pelo Jabaquara, assim, sem bengala, de guarda-chuva. Numa boa. Muita gente já viu isso aí”, disse Felipe Gomes.
A reportagem do “Esporte Espetacular” acompanhou Ricardo por alguns dias enquanto ele se deslocava de casa até o Centro Paralímpico Brasileiro. O atleta caminha pela calçada sozinho e sem bengala. Em outro momento, ele aguarda a carona e entra no carro.
“A pessoa com deficiência visual é a que entrou no carro agora? Não. E ela fala que é cega? Não, não pode. Sendo cega fazer esse movimento? Não. Ela foi direto na maçaneta do carro. O carro parou, ela reconheceu e foi direto na maçaneta sem tatear”, analisou a oftalmologista Maria Aparecida Haddad.
“Ele foi direto na porta e ali tem um desnível. Normalmente, o deficiente visual mapeia muito os ambientes, mas ali é uma situação nova. Ele foi direto na maçaneta” analisou Helder Alves da Costa Filho, oftalmologista e classificador do IPC.
Em outro momento gravado pela reportagem, Ricardo desvia de obstáculos ocasionais de uma obra na via. São objetos que não estão normalmente no local.
“Ali havia uma diferença de nível, e ele subiu direitinho, passou. Realmente gera suspeita. Ele não é cego total. Ele tem visão de vultos, de obstáculos e tal. Mas aí, realmente, ele sobe uma situação nova no trajeto dele”, disse o oftalmologista e classificador do IPC.
A diferença entre atletas cegos e com baixa visão
Todos os entrevistados que fizeram denúncias nessa reportagem ressaltam a vantagem esportiva que esses competidores têm ao disputar suas provas em uma categoria, em tese, inferior em termos de desempenho. Essa diferença pode ser percebida nos resultados.
Em Pequim 2008, na categoria dos cegos (T11), Lucas Prado venceu os 100m, os 200m e os 400m rasos. Se tivesse competido na categoria T12, para competidores de baixa visão, as marcas que Lucas cravou seriam insuficientes para garantir o ouro ou mesmo uma medalha.
Esse é um padrão que se repetiu em todas as medalhas de ouro paralímpicas conquistadas pelos três atletas mencionados nas denúncias. Assim como Lucas, Silvânia e Ricardo não teriam vencido suas provas se estivessem classificados na categoria T12.
Todos os atletas paralímpicos precisam passar por uma classificação que, em linhas gerais, define o grau de deficiência de cada e qual categoria eles vão competir. No caso de um atleta cego, ele é obrigado a apresentar uma série de documentos que são pedidos pelo Comitê Paralímpico Internacional (IPC). Esses exames não precisam ser feitos necessariamente por médicos vinculados à entidade. No entanto, assim que o atleta obtém os resultados, o laudo é avaliado por um médico classificador vinculado ao IPC e que atua de forma voluntária. Para disputar provas na categoria dos atletas com maior deficiência visual, os atletas denunciados passaram pelo crivo do IPC.
“Basicamente, a classificação visual é baseada em dois fatores subjetivos: acuidade visual, que é aquela medida de visão clássica de consultório, só que com tabelas mais específicas; e o campo visual, que é o que a gente tem de visão periférica. Nos dois você depende da informação do atleta”, explica Helder Alves da Costa Filho, oftalmologista e classificador do IPC.
Uma parte dos exames que definem a acuidade visual do competidor tem um fator subjetivo, pois o próprio atleta dá informações ao médico classificador sobre o quanto enxerga determinada letra na tabela LogMAR.
“É bem possível (subverter o resultado de um exame). Não é fácil. Existem situações de simulações. Existem situações em que a pessoa realmente acha que não está enxergando. Existem pessoas que têm o problema, mas que exageram. Existem testes objetivos que você consegue fazer, reflexo pupilar, OCT, tomografia, que facilitam bastante o diagnóstico, mas no teste subjetivo a pessoa consegue ludibriar. Eu diria que é até fácil se a pessoa estudar”, disse o oftalmologista Emerson Castro.
“Eu não tenho essa pretensão que não vou ser enganado. A gente pode ser enganado. O que a gente faz, como no doping, é tentar dificultar de ser enganado. Se a gente tem dúvida, o atleta simplesmente não compete” disse Helder Alves da Costa Filho, oftalmologista e classificador do IPC.
Denúncias são recorrentes em outros países
A polêmica em torno do sistema de classificação e as denúncias são recorrentes em outros países. Este ano, um documentário feito pelo programa “Four Corners”, da rede “ABC Austrália”, mostrou uma série de suspeitas envolvendo atletas paralímpicos que estariam mentindo ou exagerando deliberadamente suas deficiências.
No material, o ex-diretor executivo do IPC, Xavier Gonzalez, não negou que seja possível burlar a classificação.
“Se é fácil trapacear? Eu não acho, não acho que é fácil, mas se uma pessoa quiser fazer isso, tenho certeza de que ela vai conseguir”, disse o espanhol.
“É um mal internacional, acontece muito nos outros países. Tá todo mundo errado. Infelizmente, quem consegue assim roubar mais, ganha mais”, disse um denunciante.
Mudança de comportamento dos denunciados
Aqui no Brasil, outro fator que intriga as pessoas ouvidas é a mudança de comportamento dos atletas denunciados quando estão em competição ou na presença de algum veículo de imprensa.
“Por que eles não continuam atuando como eles atuam todos os dias? Se eles não usam bengala no dia a dia, por que eles usam quando tem a Globo lá? Por que eles usam quando tem uma competição grande?”, questionou um denunciante.
Silvânia Costa, que em diversos vídeos caminha sozinha, foi gravada por um dos denunciantes usando a bengala longa em um dia de competição aberta para cobertura da imprensa.
“Atleta que nunca anda com guia começa a pedir até o guia emprestado do colega para auxiliar. ‘Ah, me leva no banheiro. Ah, faz isso, faz aquilo.’ A pessoa mexe no celular normalmente aí, do nada, chega com leitor de tela ativado. Às vezes não sabe nem usar o leitor de tela e tem que pedir ajuda pra quem realmente usa leitor de tela, porque não tá conseguindo usar. Só pra fingir, só pra manter a aparência”, disse um denunciante.
Para quem há tempos diz notar esses comportamentos, o problema é sistêmico e tem o conhecimento do CPB.
“Existe esse interesse em manter esses atletas onde eles estão para que o Brasil continue ganhando medalhas”, disse um denunciante.
“Eu fico pensando muito nessa situação. Será que mantém esses patrocínios? Essa sujeira toda dentro do Comitê Paralímpico. Eles sempre souberam e nunca fizeram nada”, disse Felipe Gomes.
O que falaram os denunciados
Lucas Prado
Por telefone, Lucas questionou a denúncia.
“Atletas que têm classes diferentes, que se sentem… que não têm onde ir e querem chamar a atenção.”
Ele disse que iria aguardar a reportagem e desligou a ligação.
“Pode publicar a matéria que eu vou conversar com meu advogado, tá bom?”
Após a exibição da reportagem, Lucas Prado se pronunciou em sua rede social. Ele deu sua versão para os vídeos exibidos e ressaltou não ter sido favorecido pelo CPB no processo de classificação oftalmológica.
“O CPB nunca me favoreceu nada, portanto nunca propôs a mentir por mim. Em 2012, quando pedi minha classificação, que os Estados Unidos, que outros países queriam minha reclassificação, eu não podia pedir. O CPB pediu minha classificação. Foi feito, fui submetido a novos exames, como eles queriam, fiz do jeito que eles queriam. Isso foi sacramentado e encerrado.”
Lucas Prado ainda afirmou que vai provar nunca ter tentado burlar a classificação oftalmológica.
“Vou provar pra todo mundo que falou isso que não é assim que é. Vou mostrar para todo mundo. Claro, eu não precisava mostrar, poderia deixar muito bem isso de lado. Não tenho o que provar, todos os exames meus já provam isso. Então não estou fraudando, não estou fingindo. (…) Nunca fingi quem eu sou. Aonde cheguei, não foi trapaceando, não foi passando por cima de ninguém, foi tudo na Justiça, tudo conforme os médicos sempre pediram e tudo como mandam as regras do jogo.”
Silvânia Costa
Depois de competir nos Jogos Parapan-Americanos de Santiago, Silvânia Costa foi ao Mato Grosso do Sul, onde mora. Por chamada de vídeo, ela conversou conosco.
“Eu sou T11, eu sou considerada como cega. Mas não quer dizer que só vejo escuridão, e não quer dizer que eu não esteja vendo. Existe um resíduo de 5%, e eu utilizo meu resíduo no meu dia a dia, nas minhas dificuldades. A gente vai perdendo a visão, a gente vai ficando bom de audição, de tato, de comunicação.
Ela diz que se adaptou às situações do dia a dia em lugares que já conhece.” Sobre a mudança de postura durante as competições ou na presença da imprensa, ela deu a seguinte explicação:
“Eu uso bengala conforme a dificuldade. Tem dias que eu estou bem, tem dias que eu não estou bem. Tem dias que eu estou enxergando para caramba, tem dias que eu chego ao meu treino e tô bem. Quando tem muita gente no mesmo local fazendo barulhos, não me dá informações do que está acontecendo. Eu me perco, eu me trombo e aí eu utilizo bengala.”
Sobre o vídeo em que ela aparece correndo uma prova olímpica sozinha e sem a ajuda de um guia, Silvânia alega que havia pessoas do lado de fora da pista a auxiliando.
“Existia uma arbitragem lateral naquele vídeo que gritava o tempo todo. E aquilo para mim já era a minha visão, eu não precisava de outra pessoa estar me chamando e nem precisava estar vendo para correr.”
Silvânia afirma ainda que protestou ao ser classificada na T11, a categoria para os competidores com maior restrição visual.
“Não é o atleta que escolhe a classe, mas sim sua deficiência visual comprovada em laudo, comprovada em exame. E eu tenho oito classificações internacionais. Isso não quer dizer que eu sou T11, que eu seja cega, não quer dizer que eu não tenha resíduo, que eu deixe de fazer ou não fazer as coisas. O que está na minha rotina, no meu dia a dia, eu faço com tranquilidade. Quando eu fui considerada T11 cega, a gente recorreu contra a decisão do classificador. Eu não queria ficar na T11. Pagamos o recurso para que eu não fosse considerada T11.”
Ricardo Costa
Ricardo não atendeu às ligações nem respondeu as mensagens da reportagem do “Esporte Espetacular”.
O que falou o Comitê Paralímpico Brasileiro
Procurado pela reportagem do “Esporte Espetacular”, o Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) respondeu por e-mail. A entidade reforçou que o processo de classificação é conduzido pelo Comitê Paralímpico Internacional (IPC). Nem os atletas, nem o próprio CPB têm poder de definir em qual classe cada atleta competirá. São necessários exames clínicos para a definição do processo.
A resposta ressalta que o CPB já solicitou por mais de uma vez a reclassificação dos atletas, que tiveram seus status confirmados pelo IPC. Cada um dos três atletas brasileiros citados foi submetido ao menos a cinco bancas internacionais de classificação visual. O texto ainda afirma que a entidade tem todo esse histórico documentado, muitos processos que tiveram início há 15, 17 anos.
O que falou o Comitê Paralímpico Internacional (IPC)
O Comitê Paralímpico Internacional (IPC) encaminhou os questionamentos da reportagem do “Esporte Espetacular” à Federação Internacional de Atletismo Paralímpico, a World Para Athletics (WPA), responsável pela regulamentações da modalidade. A entidade se pronunciou em nota:
“Os detalhes da classificação individual do atleta são confidenciais, e a WPA não está apta a comentar especulações sobre o assunto.
De acordo com as regras de classificação da WPA, deturpar intencionalmente técnicas ou habilidades e/ou o grau da deficiência é uma séria infração disciplinar. Qualquer evidência de uma deturpação intencional deve ser enviada diretamente para a WPA por email para info@worldparaathletics.org. Todas as alegações recebidas são investigadas pela WPA e as devidas medidas são tomadas, incluindo, se necessário, consulta com classificadores, consultores jurídicos e outros especialistas. Se a evidência de deturpação intencional existir, a WPA irá cobrar os envolvidos e abrir procedimentos disciplinares junto ao Painel de Recursos de Classificação.
As consequências para um atleta ou qualquer outra pessoa que for encontrada cometendo essa deturpação intencional incluem um período de vários anos de suspensão e desclassificação de resultados em competições, medalhas e prêmios conquistados.”