A República Federal da Alemanha entrou oficialmente na corrida para sediar os Jogos Olímpicos de Verão com uma proposta que vai além da simples disputa por um grande evento esportivo. A ideia central é redefinir a relação do país com o Olimpismo e, ao mesmo tempo, projetar uma nova narrativa nacional — que supere os fantasmas do passado, consolide o presente e antecipe um futuro baseado em sustentabilidade, diversidade e união.
Por Javier Carro / Inside the Games
Adaptação: Paulo Pinto / Global Sports
Curitiba, 16 de junho de 2025
Diferentemente das candidaturas anteriores, marcadas por iniciativas isoladas ou visões regionalizadas, a proposta atual é inédita: uma candidatura nacional articulada pela Confederação Alemã de Esportes Olímpicos (DOSB), com o envolvimento direto de quatro regiões — Berlim, Hamburgo, Munique e o conglomerado urbano do Reno-Ruhr. Nenhuma dessas cidades entra na disputa de forma individual. O projeto é construído de maneira cooperativa, numa tentativa de substituir a antiga competição interna por uma visão compartilhada de sucesso olímpico.
Essa abordagem coletiva tem raízes em frustrações históricas. Desde os Jogos de Munique em 1972, que ficaram marcados pelo atentado terrorista contra a delegação israelense, a Alemanha tenta, sem êxito, sediar novamente os Jogos Olímpicos. Candidaturas como Berlim 2000, Leipzig 2012, Munique (Jogos de Inverno de 2022) e Hamburgo 2024 fracassaram antes mesmo de chegarem à votação do Comitê Olímpico Internacional (COI). Em algumas dessas ocasiões, a resistência popular — expressa em referendos locais — foi determinante para barrar os projetos, especialmente diante de preocupações com os altos custos, os impactos ambientais e a viabilidade de longo prazo.
“Diálogo público, transparência e compromisso ambiental.”
Diante desse histórico, o DOSB promoveu uma profunda reestruturação em sua estratégia. O presidente da entidade, Thomas Weikert, explicou que as reformas propostas pela Agenda Olímpica 2020 tornaram o evento mais atrativo para países organizadores. “Estamos convencidos de que esse novo processo de seleção permitirá encontrar o melhor conceito para a Alemanha — e também aquele com maior capacidade de vencer no cenário internacional. Estamos muito satisfeitos por contar com quatro propostas de altíssima qualidade”, declarou.
A nova candidatura será construída em três fases e deverá durar até 2026, com ênfase inédita em diálogo público, transparência e compromisso ambiental. Na primeira etapa, finalizada em maio, os estados federais interessados apresentaram seus planos preliminares, avaliados com base em critérios técnicos, econômicos e operacionais.
A segunda fase prevê a possibilidade de realização de referendos locais até o verão de 2026 — uma medida não exigida pelo COI, mas considerada crucial pelo DOSB para garantir legitimidade democrática ao projeto. A terceira e última fase, prevista para o outono europeu de 2026, será dedicada à avaliação final das propostas com base em uma matriz de análise desenvolvida em conjunto com o governo federal, levando em conta a competitividade internacional e a sustentabilidade a longo prazo.
Uma nova chance cem anos depois
O contexto internacional também favorece a candidatura alemã. Com Los Angeles já confirmada para 2028 e Brisbane para 2032, os Jogos de 2036 são a próxima edição com sede indefinida. A rotação continental adotada pelo COI coloca a Europa em vantagem na disputa — e, nesse cenário, a Alemanha desponta como forte candidata. Mas o simbolismo vai além: caso confirmada, a sede de 2036 marcaria o centenário dos controversos Jogos de Berlim, realizados em 1936 sob o regime nazista.
O atual prefeito de Berlim, Kai Wegner, destacou esse aspecto simbólico. “Acredito que, onde quer que os Jogos de 2036 sejam realizados, haverá uma referência inevitável à edição de 1936. Isso faz parte da história e precisa ser reconhecido”, afirmou à Associated Press. “Mas também tenho orgulho de dizer que sou prefeito de uma cidade que mudou radicalmente nos últimos 100 anos. Hoje, Berlim é uma metrópole internacional, diversa, democrática e aberta.”
Alemanha quer vencer por todos: Olimpíada descentralizada e pacto social estão no centro da candidatura
O caminho para que a Alemanha sedie os Jogos Olímpicos de 2036 é, ao mesmo tempo, promissor e desafiador. De um lado, a disputa internacional é acirrada: a Índia já formalizou sua candidatura para 2036, enquanto países como China, Coreia do Sul, Turquia, Itália e Espanha demonstram interesse em edições futuras, como 2040 ou 2044. Do outro, a resistência interna permanece significativa. Grupos como o movimento “NOlympia” já iniciaram campanhas contra a ideia, citando falta de transparência e os altos custos envolvidos. Em Berlim, a deputada Klara Schedlich (Partido Verde) criticou abertamente a iniciativa: “Nossos impostos são mais bem investidos em clubes esportivos do que no COI”, declarou à Associated Press.
Os traumas de candidaturas rejeitadas pela população — como aconteceu em Hamburgo (2015) e Munique (2013) — ainda estão frescos. Diante disso, a Confederação Alemã de Esportes Olímpicos (DOSB) aposta em um novo caminho: criar legitimidade a partir do diálogo. A senadora de Esporte de Berlim, Iris Spranger, defende um processo de escuta ativa e construção de consenso. “Não se trata apenas de um ‘sim’ ou ‘não’. As pessoas precisam entender o que está sendo planejado”, afirmou.
Nesse contexto, o diferencial da proposta alemã é a distribuição dos Jogos entre diversas cidades. A infraestrutura existente será amplamente aproveitada: Berlim traz visibilidade global; Hamburgo, capacidade logística e portuária; Munique, experiência organizacional; e a região do Reno-Ruhr conta com uma vasta rede esportiva. A ideia é construir um “ecossistema olímpico” descentralizado, refletindo a organização federativa do país. O modelo também permite diluir custos, minimizar impactos urbanos e ampliar os benefícios do legado olímpico.
Mais do que uma sede, os Jogos seriam um instrumento de transformação interna. O chanceler Friedrich Merz foi direto: “A Alemanha precisa não apenas de boas instalações, mas de uma base esportiva muito mais sólida”. A proposta, portanto, não se limita à candidatura, mas visa impulsionar o esporte escolar, de base e federado em todo o país — áreas que vêm sofrendo com cortes de investimento e desarticulação institucional.
Esse reposicionamento estratégico é visto como essencial para recolocar o país no radar do Comitê Olímpico Internacional. O dirigente Michael Mronz, membro alemão do COI, sintetizou a ambição: “Não queremos apenas participar da disputa. Queremos vencer”. E mesmo que a edição de 2036 não se concretize, a Alemanha seguirá preparada para as edições de 2040 ou 2044, com um projeto técnico aprimorado e uma narrativa nacional ainda mais consolidada.
Nesse processo, o país enfrenta uma equação delicada: precisa convencer tanto o COI quanto seus próprios cidadãos. A proposta se torna, assim, uma experiência inédita de governança compartilhada, capaz de harmonizar ambições locais e metas nacionais em torno de um projeto olímpico sustentável, viável e inclusivo. O DOSB tem repetido que os Jogos devem ser mais do que um evento — devem ser uma oportunidade para que o país se reencontre consigo mesmo.
“Queremos que a Alemanha se recupere por meio dos Jogos Olímpicos”, resumiu Volker Bouffier, membro do conselho do DOSB. Em um mundo marcado por polarizações políticas, mudanças climáticas e incertezas econômicas, a candidatura alemã tenta propor algo diferente: uma nova cola social baseada no esporte.
O prazo final para a decisão interna está marcado para o outono europeu de 2026. Até lá, será preciso construir uma proposta técnica irrefutável, uma narrativa poderosa e — acima de tudo — um pacto social que permita à Alemanha olhar para o Olimpismo e dizer, com segurança: estamos prontos!